“S
e um dia eu pudesse ver meu passado inteiro”, já dizia o poeta. Interessante como o passado se desmembra e nos recordamos somente de fragmentos de pretérito. E, quando lembramos nitidamente uma situação que aconteceu lá atrás, é sempre comum ouvir um “lembro como se fosse hoje”.
De uns anos pra cá, tenho feito o exercício de revisitar meu passado quando me convém. Recordações de infância. Lugares seguros construídos ao longo do tempo. Pessoas agradáveis. Sensações reconfortantes. Outras nem tanto.
Mas uma lembrança que gosto de buscar, principalmente quando me sinto sozinha, é a sensação que tive em um réveillon pós-pandêmico. Viajava pra Bahia. Muitas pessoas conhecidas, um grupo de Brasília fechou uma pousada de um amigo querido, e eu estava no bolo. Mas me sentia só. Tinha comprado o pacote pra viajar com meu namorado da época. O relacionamento não durou até a virada. Ele não iria. E fiquei entre indecisões se iria ou não, resolvi ir… Aflita. Já fazia uns 20 anos que eu emendava uma relação na outra e não sabia o que era estar de fato sozinha.
Fui. E, você sabe, a Bahia tem o mel… Tem o dendê. E essa mistura me mostrou o quanto era incrível estar em minha própria companhia. A sensação de liberdade, o descompromisso com a hora, a opinião que eu não precisava pedir a ninguém. A beleza da solidão. Dormir quando queria, acordar igual. Não se preocupar se o outro queria comer, o que queria comer, o que queria fazer. Era eu. Somente eu. Decidindo finalmente as minhas próprias vontades.
Lembro exatamente da sensação. O dia estava amanhecendo. Estávamos inebriados de virada de ano. Me virei pro mar… e pude ver um cenário que me deixou boquiaberta. O céu estava colorido, rosa, laranja, azul, amarelo. O sol do novo ano certificava que todos os desejos foram recebidos. Caminhei sozinha até molhar os pés. Risadas e música longe. Respirei. Os olhos brilhando extasiados deixaram cair uma lágrima, que acompanhou um sorriso. “Como eu estou feliz!” Eu realmente estava feliz! Tão feliz, tão feliz, que até hoje consigo sentir essa felicidade. Lembro como se fosse hoje. Foram dias realmente incríveis.
Revisitei essa lembrança da Bahia esses dias. Há tempos não abria essa porta do passado. Ela está viva. A Sarita na Bahia, em São Paulo, Brasília, Granada, Porto, Füssen, León ou San Sebastián. Elas caminham em minha mente, me relembrando vivências importantes do quanto é prazeroso usufruir da nossa genuína vontade de viver. De viver o que gosta de viver.
Vou a esse lugar sempre que sinto que devo, mas não fico lá, porque passado é bússola, não ponto de chegada. Revejo o passado pra me nortear no presente e me guiar no futuro. Pra me lembrar do que já construí, pra ter certeza do que quero estruturar, pra perceber o que venho transformando.
Vivo por mais momentos assim. Me celebro. Me revisito. Me preencho. E me crio.